Exigências, exageros e bilhões: a crescente revolta contra as Olimpíadas que vai muito além das aflições do Rio

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Mesmo antes que os organizadores dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro estivessem lutando contra o surto do vírus zika e as duras críticas sobre o tratamento que a cidade dá às suas águas poluídas, o COI (Comitê Olímpico Internacional) já enfrentava uma crescente mudança de humor em relação à Olimpíada como instituição, muito maior do que a ampla divulgação das dificuldades do Rio apenas alimenta.

Cada vez mais as cidades concluem que, atualmente, não faz sentido assumir o risco ou o custo para realizar uma edição dos Jogos.

As três semanas em que os atletas olímpicos de fato competem ainda exercem, sem dúvida, sua magia. E, justiça seja feita ao Rio, o discurso alarmista parece surgir antes de quase todas as edições das Olimpíadas. Sempre também, no fim, os Jogos acabam se realizando.

No entanto, até mesmo esses dois fatores já não são suficientes para poupar os dirigentes do COI da crítica de que os Jogos se tornaram pesados e caros demais para que tenham êxito, pelo menos na forma atual de escolha das sedes, concepção e realização.

Boston desistiu de sediar os Jogos de 2024, em parte, por conta do baixo apoio do público© Getty Boston desistiu de sediar os Jogos de 2024, em parte, por conta do baixo apoio do público

O histórico de exigências imperialistas e exageradas, como, por exemplo, o manual de candidatura de 7 mil páginas para as cidades anfitriãs, que abrange minúcias como quando servir aperitivos ou “tortas da estação”, não alivia as acusações que pendem sobre os 100 dirigentes do COI.

“O COI é uma oligarquia clássica, que toca violino enquanto os Jogos Olímpicos ardem em chamas”, disse John Rennie Short, professor de políticas públicas na Universidade de Maryland, no Condado de Baltimore, que escreveu 38 livros sobre a globalização e as questões urbanas.

Thomas Bach, presidente do COI, anunciou em julho passado que os Jogos de 2022 serão em Pequim© Getty Thomas Bach, presidente do COI, anunciou em julho passado que os Jogos de 2022 serão em Pequim

“O COI detém um monopólio com pouco estímulo para se modificar. Eles recebem todos os benefícios e insistem que as cidades anfitriãs e os governos literalmente assinem documentos assumindo todos os custos e riscos. Portanto, já de início isso tudo sempre foi um tanto cabal, mas não nos incomodávamos tanto quando pelo menos funcionava”, completou Short.

Robert Livingstone, historiador dos Jogos Olímpicos e produtor do site Gamesbids.com, afirmou que as coisas ultrapassaram o ponto aceitável. “A soma de US$ 41 bilhões ou mais gasta em Sochi é o preço que assusta todo mundo”, disse, referindo-se aos Jogos de Inverno de 2014.

“O COI respondeu com a Agenda 2020 inteira – a reforma divulgada em 2014 que cita sustentabilidade, um legado a ser deixado, e outros itens desse tipo. Porém, há dúvidas se o COI dará suporte a esse plano. O COI forçou tanto os limites que finalmente foi longe demais, por isso as pessoas estão tão zangadas”, disse Livingstone.

Durante o processo de escolha da sede dos Jogos de Inverno de 2022, cinco cidades que haviam expressado interesse abandonaram suas candidaturas porque os eleitores ou os governos não aceitariam o risco financeiro. Muitos delas também culparam as exigências e até mesmo a “arrogância” do COI.

Jeff Ruffolo, um norte-americano que ajudou Pequim a realizar os Jogos de 2008 e a assegurar o êxito de sua candidatura para 2022, chamou o processo de escolha da sede de “uma piada”. “Todos estão rindo dele, com exceção de Lausanne”, Ruffolo declarou ao “The Guardian”, referindo-se à sede do COI na Suíça. “Eles não perceberam que estão cavalgando um cavalo morto.”

Em 2002, o então presidente do COI, Jacques Rogge, profetizou o espectro da relutância de muitas das principais cidades do mundo em disputar a posição de sede das Olimpíadas ao reconhecer a “necessidade de simplificar custos e reduzir os Jogos para que as cidades anfitriãs não se limitem às metrópoles ricas. A escala dos Jogos ameaça sua qualidade”.

Isso soou encorajador. Mas então o mundo viu Atenas gastar US$ 15 bilhões em 2004, sobre os quais paira a acusação de ajudar a empurrar a Grécia para a crise econômica. Mais tarde, Pequim relatou um gasto de US$ 41 bilhões em 2008 e, em um cenário que se repete em todos os lugares, muitos de seus elefantes brancos construídos para a Olimpíada viraram temas para fotografias de ruínas urbanas, “ruin porn”. Londres acumulou um montante de US$ 15 bilhões de custos excedentes em 2012. Agora Tóquio, anfitriã dos Jogos de 2020, já decidiu que não pode bancar o estádio que era um dos elementos centrais de sua candidatura. Os planos foram desfeitos em julho, entre protestos.

“O COI se importa?”, questiona Short. “O que aconteceu é uma lição clássica da crise financeira global: se você não é o responsável pelo risco, faz coisas estúpidas. Mas muitas cidades estão refazendo os cálculos. Esse pode ser finalmente um ponto de virada.”

Existe, de fato, uma “bola de neve” no sentido de que os Jogos estão mais frágeis do que nunca, e a culpa está na administração do COI.

Essa percepção somente se acelerou com a retirada em massa das candidaturas para os Jogos de Inverno de 2022, que deixou o COI diante da singular escolha entre Almaty, no Cazaquistão, e um retorno a Pequim, que precisará fabricar quantidades enormes de neve e fica a 145 quilômetros das montanhas onde os eventos acontecerão. O que a antiga república soviética e a China têm em comum?

“São dois dos piores lugares do mundo em termos de direitos humanos”, afirmou Short. “Em muitas cidades europeias têm sido difícil conseguir a aprovação dos eleitores para a candidatura aos Jogos. Boston também disse não. Então, sobraram países desesperados para obter reconhecimento e aumentar seu prestígio. Ou cidades de países não democráticos e totalitários, onde não são feitos referendos de eleitores.”

Uma das deserções mais surpreendentes da candidatura para 2022 foi Oslo. Os governantes noruegueses admitiram posteriormente que tiveram várias discussões profundas sobre se estariam dando um golpe doloroso no movimento olímpico caso sua nação tão esportiva se juntasse ao êxodo. A Noruega foi o país que mais conquistou medalhas nos Jogos de Inverno, e seus Jogos de Lillehammer de 1994 foram um sucesso estrondoso tanto de crítica quanto esportivo.

“Temo pelo futuro dos Jogos Olímpicos de Inverno, de verdade”, afirmou o legislador norueguês Svein Harberg, chefe do comitê que liderou o debate sobre o abandono da candidatura.

Mas o que pesou na decisão dos noruegueses?

“A Noruega é um país rico, porém não queremos gastar dinheiro com coisas erradas, como o cumprimento das exigências loucas dos integrantes do COI”, disse Frithjof Jacobsen, principal comentarista político do jornal norueguês VG. A crítica é um refrão familiar.

Ainda assim, em vez de reconhecer que as razões dos noruegueses ecoaram preocupações expressas em Nova York e Estocolmo, Chicago e Istambul, Boston e Hamburgo, o presidente do COI, Thomas Bach, ridicularizou os críticos e sugeriu que eles distorcem os fatos. Ele mencionou os novos contratos de longo prazo do COI com patrocinadores e a imprensa, inclusive o acordo de US$ 7,75 bilhões com a NBC pelos direitos de transmissão de TV nos EUA.

“A perspectiva é bastante positiva”, insiste Bach. “Ninguém celebraria esse tipo acordo se houvesse alguma dúvida sobre a perspectiva.”

Chris Dempsey, copresidente do esforço No Boston Olympics (“Não à Olimpíada de Boston”, em tradução livre), discorda.

Depois que o grupo de Dempsey ajudou a virar a opinião pública contra a candidatura de Boston aos Jogos de 2024, ativistas de Hamburgo entraram em contato e pagaram a ele e a seus colegas para que viajassem à Alemanha e compartilhassem dicas. Um mês depois, a Reuters divulgou que as autoridades alemãs ficaram chocadas quando os cidadãos votaram contra a candidatura de Hamburgo para 2024 no referendo de dezembro. Há apenas poucas semanas, adversários das candidaturas em Roma e Budapeste também procuraram Dempsey.

“Queremos esclarecer que não estamos afirmando que nenhuma cidade deve sediar as Olimpíadas”, enfatiza Dempsey. “O que defendemos é que as cidades que consideram a candidatura precisam ter uma conversa franca sobre os prós e contras. E há uma tendência definitiva de que, ao realizar esse debate, as cidades decidam que simplesmente não vale a pena. O custo é alto e o risco, quase ilimitado.”

Ainda é cedo para falar no surgimento de um movimento “Mate as Olimpíadas”.

Por enquanto, está mais para um protesto do tipo “Não no Meu Quintal”. E a busca por soluções ainda existe.

Uma exceção notável em meio a todo o pessimismo é Los Angeles, que deseja entusiasticamente sediar os Jogos de 2024.

Com frequência, Los Angeles é considerada a “salvadora” da Olimpíada por ter apresentado a candidatura para os Jogos de 1984 e ter obtido um superávit operacional inédito de US$ 225 milhões. Desta vez, o Comitê de Organização dos Jogos Olímpicos da Califórnia do Sul alardeia que seu plano de usar as instalações, a infraestrutura e os alojamentos existentes na região pode ser um modelo para a escolha das sedes e a realização de futuras edições. Não foi difícil conseguir a aprovação local para essa ideia.

Uma pesquisa de opinião pública lançada há poucos dias pelo Centro para o Estudo de Los Angeles da Universidade de Loyola Marymount concluiu que 88% dos cidadãos de LA apoiam a realização dos Jogos na cidade novamente.

“Com 97% dos locais de nível internacional que constam no Plano dos Jogos já construídos ou planejados como instalações permanentes (…) somos capazes de manter os custos baixos”, escreveu Gene Sykes, diretor geral do LA 2024, em um e-mail ao ESPN.com.

No entanto, Short, em um artigo assinado no “The Washington Post”, defende uma abordagem mais radical. É uma volta atualizada e um tanto utópica da velha ideia jamais lançada e que ainda não está em discussão séria: a organização dos Jogos de Verão em um local permanente perto de Atenas, o lar ancestral das Olimpíadas. Short propõe fazer o COI pagar, para variar, a construção, a manutenção das instalações e a organização dos Jogos em um complexo múltiplo ecológico e construído com sustentabilidade em uma de muitas ilhas gregas, e que essas instalações sejam usadas com outros objetivos culturais e atléticos durante o ano todo.

“Não acho que isso seja tão insano”, disse Short, com uma risada.

Não mais do que acreditar que o COI pode continuar como está.

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